A Constituição Federal de 1988, denominada de “Constituição cidadã”, foi
editada após longo período de exceção ao regime democrático, tendo sido o
momento do redesenho institucional brasileiro.
Demonstrou, assim, relevante preocupação com a garantia dos princípios
que a nortearam, in casu, com referência ao processo eleitoral
consagrador da democracia participativa, dentre outros, o da igualdade e da
liberdade do voto, o da isonomia entre os candidatos postulantes e lisura dos
meios empregados.
Neste sentido, o alistamento dos eleitores com a formação do cadastro
eleitoral, determinando o corpo de cidadãos devidamente qualificados ao
exercício do sufrágio, é tido como um dos primeiros atos do processo que
culmina com a proclamação dos eleitos, para posterior diplomação e posse para o
exercício dos mandatos eletivos.
Ressaltando a importância do cadastro de eleitores, Alvim (2016, p. 195)
afirma que “De sua justa e fiel construção depende a legitimidade de todo o
processo eletivo e, portanto, da própria democracia.”
Nesse contexto, a determinação da forma como ocorrerá a governança
eleitoral, a qual, segundo Cambaúva (2014), envolve as instituições e normas
que regem a disputa nas eleições, terá impacto decisivo nestas.
A governança eleitoral se divide em atividades diversas, também
denominadas dimensões ou níveis, quais sejam, rule making, rule
application e rule adjudication.
Sinteticamente, a dimensão de rule making refere-se à elaboração
das regras incidentes sobre a eleição, já a rule application diz
respeito à administração do processo das eleições, com a aplicação daquelas
regras e, por fim, a rule adjudication consiste na instância em que
serão dirimidos os conflitos entre os atores surgidos durante o processo
eleitoral.
Neste quadro, a administração do cadastro eleitoral, bem como o prévio
alistamento, encontram-se inseridos na dimensão do rule application.
A importância do alistamento e do cadastro é mencionada por Elkit e
Reynolds (2005 apud TAROUCO, 2014, p. 232) como um dos fatores que
afetam a atuação dos partidos e, consequentemente, o funcionamento dos sistemas
partidários.
De forma mais ampla, Tarouco (op. cit., p. 230) destaca que:
Os chamados EMB – Electoral Management Boards (IDEA,
2005) têm sido estudados especialmente do ponto de vista de sua independência
ou autonomia, que por sua vez é tratada como variável independente para
explicar desde a qualidade até a estabilidade das novas democracias.
No Brasil, ainda no período do Império, onde vigia o voto censitário e
era necessária a demonstração da renda mínima exigida por lei, para a
realização do alistamento, o cadastro de eleitores era um dos focos de fraudes
nas eleições, havendo os chamados “cabalistas”, indivíduos aos quais cabia a
atribuição de realizar a inclusão na lista de eleitores dos correligionários de
seu chefe, na maior quantidade possível, a fim de obter mais votos, como
menciona Carvalho (2016, p.39).
A sobrevinda da República, com sua inspiração positivista, não foi
bastante para colocar termo a tais práticas, como deixou claro Assis Brasil (1998,
p. 312) em seu texto, considerando um clássico da literatura política
brasileira, Manifesto da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul ao país,
escrito em 1925, onde escreveu:
Seria quase fazer agravo a esses trinta e tantos, a
esses talvez quarenta milhões de habitantes do nosso território-colosso. Provar
o que todos vêem, o que todos sentem, o que todos lamentam, isto é, que, sob as
leis existentes:
Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor;
Ninguém tem certeza de votar, se porventura foi alistado;
Ninguém tem certeza de que lhe contem o voto, se
porventura votou;
Ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de
contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro
escrutínio, [...]
Tendo aderido a Revolução de 1930, Assis Brasil, integrou a comissão
responsável pela elaboração do primeiro Código Eleitoral brasileiro, promulgado
por meio do Decreto nº 21.076 de 1932, o qual criou a Justiça Eleitoral e lhe
atribuiu, dentre outras, a função de administrar e fiscalizar o alistamento e o
cadastro eleitoral, sendo composta por juízes profissionais, o que, no dizer de
Vale (2014, p. 16), nos legou transformações que são percebidas até os dias
atuais, como o sentimento de lisura dos atos.
Tal modelo de governança foi interrompido no período de exceção
democrática do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945,
tendo retornado após tal e se mantido até os dias atuais, com algumas
modificações, mas que não atingiram a administração do cadastro eleitoral pela
Justiça Eleitoral.
Destacamos que, no ano de 1986, após a permissão do voto facultativo aos
analfabetos, em 1985, com redemocratização do país, após pouco mais de vinte
anos da ditadura cívico-militar implantada em 1964, a Justiça Eleitoral
promoveu um recadastramento de todo o eleitorado nacional, com o escopo de
erradicar eventuais fraudes no cadastro então existente.
Atualmente, o alistamento eleitoral é realizado nos Cartórios Eleitorais,
instalados junto aos municípios brasileiros, mediante prévio agendamento pela internet
nos portais da Justiça Eleitoral, ocasião em que o alistando deverá comparecer
com a documentação pessoal exigida por lei, para a inserção dos dados
necessários ao preenchimento do requerimento de alistamento eleitoral – RAE e
coleta dos dados biométricos, compostos da fotografia, assinatura e impressões
digitais, os quais serão devidamente armazenados no cadastro eleitoral.
Em razão deste procedimento, a Justiça Eleitoral brasileira passou a
contar com o maior banco de dados da população brasileira, com reconhecida
qualidade e integridade, tendo, inclusive, a Lei Federal nº 13.444/2017
previsto a utilização de sua base para a implantação da Identificação Civil
Nacional – ICN.
Para organizar o cadastro eleitoral visando a votação e combater fraudes,
nos 150 dias anteriores à realização das eleições ocorre o fechamento do
cadastro eleitoral, período em que não há a possibilidade da realização de
novas inscrições ou transferências das já existentes.
Também, para a garantia da higidez do cadastro, foram estatuídos
mecanismos manutenção deste, para que a Justiça Eleitoral tenha o controle
sobre a correção de seu conteúdo, sendo tais o batimento do cadastro, a
correição do cadastro e o procedimento de revisão do eleitorado.
O primeiro procedimento visa a identificação da existência de inscrições
eleitorais em duplicidade ou pluralidade, realizado de forma automatizada,
previamente a operação de inserção de dados, novos ou alteradores, junto ao
cadastro centralizado do Tribunal Superior Eleitoral, gerando, quando da
identificação de inconsistências, a abertura de procedimento para a eliminação
de inscrições indevidas, presidido pelo Juiz Eleitoral da Zona onde ocorreu a
identificação do problema.
A correição de cadastro é procedimento instaurado por determinação do
Tribunal Regional Eleitoral para a apuração de fraude no alistamento de
eleitores junto a determinada Zona ou município, mediante provocação
fundamentada noticiada à Justiça Eleitoral.
Por fim, constatada eventual fraude em decorrência de correição em
percentual que possa comprometer a lisura do pleito, deverá o Tribunal Regional
determinar a revisão do eleitorado, com o comparecimento pessoal de todos
eleitores de determinada circunscrição, para que comprovem documentalmente os
requisitos necessários à inscrição eleitoral, notadamente o relativo ao
domicílio, que, nesta seara, refere-se a qualquer forma de vínculo com aquela
localidade, diferentemente da residência compulsória caracterizadora do
domicílio civil.
Sobre a importância destes, destaca Alvim (op. cit., p. 197) que:
Um registro escorreito constitui pressuposto
fundamental da lisura de um processo eletivo. Nessa lógica, a segurança do
processo democrático demanda a instituição de instrumentos de depuração do
cadastro eleitoral, com o objetivo de mantê-lo limpo, isento de fraudes e
deturpações. O cadastro eleitoral há de se espelhar, apenas e tão somente, a
massa legalmente habilitada à procedimentalização da representação política.
Destaca-se que, durante todos os atos relativos ao cadastramento dos
eleitores, é possibilitada a fiscalização pelos partidos políticos, bem como
ofertada a oportunidade de eventuais impugnações, além do acompanhamento
diuturno do Ministério Público Eleitoral, na qualidade de fiscal do cumprimento
da lei em todos os atos, em defesa do interesse público primordial envolvido,
sempre levados, quando da realização de questionamentos, ao crivo judicial.
Desta forma, em conclusão ao todos exposto, vemos que a opção pela
governança eleitoral realizada no Brasil, com a atribuição a Justiça Eleitoral
da função administrativa de todo o processo eleitoral, partindo do alistamento
até a diplomação dos eleitos, incluindo a administração do cadastro eleitoral,
criou um órgão especializado para tanto, com a necessária autonomia e independência,
e permitiu a implementação de processos uniformizados e automatizados, gerando
transparência e confiabilidade.
Permitiu, também, a implementação de mecanismos de controle aptos ao
combate de fraudes, acessíveis aos atores interessados no processo eleitoral,
gerando segurança.
Tais resultados aumentam a qualidade da democracia, ao permitir que, já
de início, o processo seja implementado com garantias à efetivação da real
vontade popular manifestada no pleito em decorrência direta do modelo institucional
adotado.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Frederico Franco. Curso
de Direito
Eleitoral.
2ª edição. Curitiba: Juruá, 2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 05/01/2018.
BRASIL. Código Eleitoral Anotado e Legislação Complementar.
12ª edição. Distrito Federal: Tribunal Superior Eleitoral, 2016. Disponível em:
<http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/codigo_eleitoral/codigo-eleitoral-anotado-e-legislacao-complementar-12-edicao-atualizado.pdf>.
Acesso em: 05/01/2018.
BRASIL,
Joaquim Francisco Assis. A democracia representativa na República: antologia.
Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. (Coleção Memória
Brasileira). Edição fac-similar.
CAMBAUVA, Daniella Fernandes. Governança eleitoral: um ensaio
comparado sobre os modelos brasileiro, boliviano e venezuelano. In: Cadernos Adenauer:
Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p. 245-260, 2014.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho.
22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
TAROUCO, Gabriela da Silva. Governança eleitoral: modelos
institucionais e legitimação. In: Cadernos
Adenauer: Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p.
229-243, 2014.
VALE, Teresa Cristina de Souza Cardoso. Aspectos históricos da
Justiça Eleitoral brasileira. In: Cadernos
Adenauer: Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p.
11-25, 2014.
VELLOSO,
Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. 3ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2012.
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