segunda-feira, 17 de março de 2025

O que morre primeiro? O homem ou o mundo ao redor?

Gene Hackman morreu antes de seu coração parar de bater.

Teve fome. Teve sede.

E ninguém veio.

E então Gene Hackman, o grande Gene Hackman, morreu. Não de doença, não de fome. Morreu de esquecimento. Qual a verdadeira morte? A do último suspiro ou a do instante em que ninguém percebe a sua falta?


Gene Hackman morreu sozinho. Um dia, todos nós estaremos solitários no momento do encontro com o nosso destino final. É inevitável. Mas para Gene a morte chegou de um jeito mais lento, mais esquecido e doloroso. Ninguém bateu à porta. Nenhum amigo ligou. Nenhum familiar estranhou a ausência.


Betsy, sua esposa, morreu primeiro. Hantavírus. Uma doença rara, transmitida pelo pó das fezes de roedores. Pouco antes ela foi à farmácia e levou o cãozinho ao veterinário. Não sabia que aquelas eram suas horas finais, que seria abatida por algo mortal carregado pela poeira invisível, das coisas que existem e não se veem. Um dia ela estava ali, no outro não. Talvez tenha passado a manhã dobrando roupas. Talvez tenha planejado o jantar. E então veio a febre, o cansaço, o nada. De repente, o fim. Fulminante, sem aviso, sem tempo para despedidas e providências.


Gene ficou sozinho, sem entender. Por sete longos dias, perambulou pela casa sem saber o que fazer, sem lembrar como agir. Aos 95 anos, o Alzheimer já havia apagado parte de sua memória e a capacidade de pedir ajuda. Talvez tenha, no fundo da mente, sentido o vazio. Talvez tenha chamado por Betsy. Mas isso não se soube ou saberá, porque ninguém estava lá.


Ninguém veio.


O que acontece quando um homem se torna invisível?


G


ene Hackman foi um dos maiores atores de Hollywood. Um ícone. O rosto duro, a voz grave, o talento bruto. Interpretou presidentes, assassinos, heróis. Foi duas vezes vencedor do Oscar, amado pelo público, respeitado pelos colegas. No auge da carreira, era forte, imbatível, voz que não tremia. Mas o que isso significa quando se tem 95 anos e se está sozinho e desamparado em casa? Quando a memória se apagou, o corpo está fragilizado e os amados ausentes?


A fama é um engano que o tempo desfaz.


O que resta quando o telefone para de tocar? Quando as pessoas presumem que você não quer ser incomodado? Quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento?


De que vale um nome célebre quando se está idoso, doente e só?


A solidão não chega de repente. Ela começa no dia em que ninguém mais pergunta como você está. No dia em que as pessoas supoem que você já tem tudo, que está bem. O esquecimento vem devagar. Constrói-se aos poucos, como uma casa onde ninguém entra.


Gene – que não se dava ares de celebridade – buscou se distanciar de Hollywood. Escolheu o isolamento, apostou que a esposa, trinta anos mais jovem, o assistiria até o final. Acreditou que não precisava de um cuidador, enfermeiro ou outros empregados. Porém, o que durante muito tempo foi bênção, converteu-se em armadilha. A casa grande ficou menor. O silêncio ficou maior. A porta ficou fechada.


Ninguém bateu.


E o homem um dia visto por milhões, partiu sem que ninguém olhasse.


A solidão dos que vivem muito por vezes me assusta. A velhice é um país estrangeiro e inóspito. Ninguém quer visitá-lo sem garantias e medidas de segurança, mas poucos são os que ousam pensar no que acontecerá quando os dias se tornarem longos demais e as noites silenciosas em excesso. Raros são os que tomam decisões conscientes para que a vida não se dissolva quando não houver mais reuniões de trabalho, estreias, jantares com amigos, idas ao cinema.


Recolho em mim cada lição dessa tragédia: morrer é um caminho sem testemunhas; a fama, uma ilusão que se desmancha na poeira; o sucesso, um eco que não se sustenta; e escolhas para a velhice devem considerar vários cenários, pois a vida é mutável e imprevisível. Ela nos surpreende em uma esquina qualquer, com a sua maleta transbordante de espantos.


No fim, somos casas sem luz se não há quem bata à porta. 


Sonia Zaghetto.

Jornalista e escritora

quarta-feira, 12 de março de 2025

Polícias Municipais: a solução para o problema da segurança pública?

Ao julgar o Recurso Extraordinário 608588 com repercussão geral (Tema 656), o STF entendeu ser possível as Guardas Municipais realizarem policiamento ostensivo, sendo fixada a seguinte tese:

“É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive o policiamento ostensivo comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso 7º, da Constituição Federal.

Conforme o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional.”

Ato contínuo, Brasil afora, inúmeros prefeitos, numa ação mais de caráter propagandístico do que de efetivamente implantação de uma política pública, correram para transformar as existentes guardas municipais em “polícias municipais”.

Não demorou para que um caso específico fosse judicializado (Processo nº 3002855-27.2025.8.26.0000), tendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, liminarmente, suspendido a norma que transformou em Polícia Municipal a guarda do município de Itaquaquecetuba.

Juridicamente, desde a decisão do Supremo, manifestei entendimento de que a leitura de que tal possibilitaria a criação de polícias municipais estava equivocada.

Primeiramente, porque, ao tratar de nosso sistema de segurança pública, a Constituição é clara e expressa ao possibilitar aos municípios a criação tão somente de guardas municipais, com atribuição de proteção de seus bens, serviços e instalações.

Em que pese a lei regulamentadora das guardas municipais (Lei nº 13.022/2014) ter buscado alargar o campo de atuação destas, seu texto mostra que sempre houve a preocupação expressa de vincular tais órgãos às questões atinentes à municipalidade e limitar sua atuação como mero colaborador a atuação dos órgãos aos quais incumbe de forma efetiva a segurança pública.



Entretanto, dentro do atual panorama social, com altos índices de criminalidade, a denominação de tais órgãos, com fins claramente de propaganda, chama a atenção para a questão da capacidade dos municípios abarcarem para si a execução desta política pública de forma efetiva.

Temos que, segundo dados, a maioria dos municípios dependem de repasses de outros entes para obterem suas receitas, sendo que, em quase metade, os repasses representam mais de 90% do orçamento.

Ainda, muitos de nossos municípios possuem renda própria insuficiente até para custear a sua própria burocracia, garantidora de suas autonomia administrativa, como custos com Câmara Municipal e salários dos demais agentes políticos.

Em municípios em melhor situação financeira, os quais são minoria, não se pode falar que haja prestação de serviços públicos de excelência nas áreas sob sua responsabilidade, como saúde básica e educação fundamental, estando tais setores, no mais das vezes, sequer prestando serviços aceitáveis. Isso sem considerar todas as demais áreas sob a atribuição municipal, com destaque para a zeladoria.

Assim, não há razão, tecnicamente, para os entes municipais, que não detém de orçamento suficiente e não conseguem dar conta das políticas públicas sob sua responsabilidade institucional, buscarem avocar para suas atribuições a atuação na área de segurança pública, que não lhes compete.

Tal atuação demanda recursos consideráveis, visto ser necessária a manutenção de recursos humanos, equipamentos, frota, insumos e soluções tecnológicas de alto custo.

A tentativa de alguns administradores de realizar uma ação que tem caráter mais de marketing do que de política pública, poderá se mostrar inefetiva, mas, mais que isso, nociva à sociedade, por tirar recursos já insuficientes de outras áreas, para as quais os municípios deveriam focar sua atuação em favor de seus cidadãos.