No final de 2024, após pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 5.875/DF, em que se discute a autonomia dos partidos políticos e a fixação do prazo de duração de seus órgãos provisórios, as bem conhecidas “comissões provisórias” foi devolvida para continuidade de seu julgamento.
Proposta pela Procuradoria Geral da República, tem como foco o §1º do art. 17 da Constituição, com a redação que lhe foi dada pela EC nº 97/2017, que assegurou aos partidos autonomia para estabelecerem a duração de seus órgão permanentes e provisórios.
Tal dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 13.831/2019, a qual incluiu o §3º no art. 3º da Lei nº 9.096/1995, permitindo que os estatutos partidários prevejam a duração de seus órgãos partidários provisórios em até OITO ANOS.
O julgamento está previsto para ocorrer ainda na primeira quinzena do mês de fevereiro de 2025.
Em seu voto, o Relator Ministro Luiz Fux se manifestou pela parcial procedência da ação, afirmando que:
"...a autonomia dos partidos políticos para a fixação da duração de seus órgãos provisórios deve ser exercida em consonância com os princípios democrático e republicano, de modo que se garanta, em prazo razoável, a realização de eleições periódicas para a direção destes órgãos e a alternância de poder"
Esta questão esta diretamente ligada com o fenômeno da oligarquização partidária que se caracteriza pela perenização de pequeno grupo de dirigentes nos órgãos nacionais do partido por longos períodos, em decorrência de ausência de instrumentos estatutários que resguardem os direitos das dissidências internas e possibilitem seu acesso a tais instâncias diretivas.
Robert Michels já descrevia tal anomalia:
Toda organização de partido representa uma potência oligárquica repousada sobre uma base democrática. Encontramos em toda parte eleitores e eleitos. Mas também encontramos em toda parte um poder quase ilimitado dos eleitos sobre a massa que os elegem. A estrutura oligárquica do edifício abafa o princípio democrático fundamental. O que é oprimido, o que deveria ser. Para as massas, essa diferença essencial entre a realidade e o ideal é ainda um mistério (1982. p.238)
Tal situação é diretamente relacionada à ausência de democracia intrapartidária, e o cientista político Fernando Guarnieri compara a falta de credibilidade dos partidos brasileiros à situação análoga vivenciada pelos europeus, o que foi diagnosticado pela denominada “Comissão Veneza” em relatório ao Conselho Europeu:
A Comissão pede para que se passe a olhar par as regras no interior dos partidos. A hipótese é a de que a falta de democracia intrapartidária afastaria as pessoas dos partidos e levaria à baixa participação do cidadão na vida política com a consequente avaliação negativa dessas instituições. (2015, p. 86)
E prossegue mencionando que, dentro de uma definição minimalista, é necessário que um partido permita que seus membros participem da escolha de seus dirigentes, candidatos e programas para poder ser considerado democrático.
Neste sentido, afirmo que, além da possibilidade de escolha dos dirigentes partidários, se faz necessária a efetiva possibilidade dos membros dos partidos em concorrerem nos pleitos internos e virem a integrar os diversos órgãos partidários, sejam diretivos, consultivos, deliberativos ou de mobilização, em todas as suas esferas.
Em tal sentido a problemática decorrente da constituição das denominadas “comissões provisórias”, órgãos partidários de direção local ou regional que, como o próprio nome revela, deveriam ter duração efêmera, até a regular eleição e constituição de diretórios partidários definitivos, com mandatos regulares a se sucederem, devidamente escolhidos em regular deliberação pela instância deliberativa interna da legenda, previamente estipulada estatutariamente, composta pelos eleitores filiados ao partido.
Ocorre que os estatutos partidários no Brasil realizaram a previsão da existência destes órgãos provisórios, notadamente nos casos de inexistência de órgão definitivo regularmente constituído ou nas hipóteses de dissolução destes por instâncias partidárias superiores, sem, contudo, no mais das vezes, limitar, em prazo razoável, a duração de sua existência e necessidade de eleição de órgãos definitivos, regulamentando tais procedimentos adequadamente.
Assim, tornou-se rotineiro na vida partidária brasileira que a maioria dos órgãos partidários municipais e até os estaduais, em algumas agremiações, seja constituída na forma de “comissões provisórias”, nomeadas, destituídas ou substituídas de acordo com a conveniência dos objetivos e estratégias políticas provenientes dos órgãos diretivos superiores, gerando um abuso na utilização de um recurso que deveria ser excepcional e transitório, ocasionado uma sucessão de órgãos diretivos provisórios nomeados sem a possibilidade de participação ou escolha dos filiados naquela circunscrição.
Neste mesmo sentido, reconhecendo a ocorrência da utilização indevida e abusiva de legítimos instrumentos estatutários, também a doutrina jurídica faz críticas às legendas:
A antidemocracia tem ganhado corpo em grande número de casos quando se trata de desalinhamento político entre as esferas internas dos partidos, ou seja, quando há desobediência à chamada verticalização de posicionamentos. Por consequência, a insatisfação superior robustece a figura do intervencionismo, lançando mão, especialmente, de uma ferramenta ditatorial denominada dissolução, ou seja, a dissolução dos diretórios quando não há alinhamento político.
É de suma importância frisar que os diretórios devidamente constituídos são
revestidos de poder para o enfrentamento das instâncias internas superiores. Os diretórios possuem legitimidade e respaldo legal para convocar convenções e registrar candidaturas. Por isso, se torna necessária a sua dissolução para que prevaleça a vontade divergente dos órgãos internos superiores, representados ora pelo diretório nacional em relação a todos os demais ou ora pelo diretório regional quando indevidamente estabelece a intervenção em diretórios municipais.
A questão a ser posta para melhor entendimento é exatamente a do desalinhamento político interno, usando o intervencionismo como forma desrespeitosa às vontades das bases, praticando-se por meio da ferramenta dissolução espécie de ditadura de vontades prevalecentes de caciques, os quais agem como se fossem donos das agremiações.
[...]
Os partidos não gozam de imunidade para praticarem barbáries e arbítrios entre seus diretórios. A concentração de poder exercida pelos diretórios nacionais é de se banir da organização partidária. O exercício de poder nos partidos deve ser aquele de fomentação de ideias de governança para ocupação de cargos no Executivo e de ampla representatividade e defesa de anseios populares ao compor o Legislativo – em qualquer das esferas – municipal, estadual ou federal. (BLASZAK, 2018, p. 312-313 e 320)
Em certas situações o cargo de presidente partidário é exercido pela mesma pessoa por vários anos, até mais de uma década, agindo este como verdadeiro proprietário da instituição e a utilizando para seu benefício pessoal, inclusive por meio da administração das verbas provenientes dos fundos públicos na realização de despesas cuja finalidade não se demonstram compatíveis com a atividade partidária.
Este tipo de ação tem um duplo efeito negativo junto ao eleitorado, tirando a representatividade dos partidos e gerando questionamento acerca da legitimidade da utilização de recursos públicos para o financiamento da atividade político-partidária, ao gerar a impressão de que o patrimonialismo seja regra geral na atividade política, mesmo fora da esfera da administração pública, se já não bastasse o efeito deletério dos recorrentes escândalos de corrupção envolvendo nossa classe política, quando no desempenho de mandatos eletivos.
Augusto Aras, mesmo antes de se tornar Procurador Geral Eleitoral, em razão de ocupar a chefia da Procuradoria Geral da República, perfilava duras críticas a tais práticas:
[...] o fenômeno da ditadura intrapartidária é corolário da malsinada cultura “patrimonialista” instaurada com as Capitanias Hereditárias, no século XVI, de modo que, desde então, o “patrimônio público vem se misturando com o patrimônio privado”. [...] Estribados nos órgãos de cúpula, os “donos do partido” exigem incondicional lealdade dos seus acólitos por eles postos nos diretórios estaduais / distritais e municipais, como faziam os senhores feudais da Idade Média. Com isso, impede-se a democrática constituição e funcionamento regular dos diretórios, de atuação nas circunscrições eleitorais de menor abrangência, o que somente deveria ocorrer pela eleição dos filiados das respectivas instâncias partidárias para ocuparem os cargos de representação legal (in Fidelidade partidária – efetividade e aplicabilidade, 1ª ed., GZ Editora, Rio de Janeiro, 2016, p.427) (apud LÓSSIO, 2018, p. 320)
Uma das consequências do fenômeno da “oligarquização partidária” é o desvio de finalidade da atividade partidária, que deixa de ser um interlocutor entre a sociedade e os mandatos eletivos, buscando a conquista do poder político para a implementação de projetos e ideologias, para passar a ser um fim em si mesmo, de onde a classe diretiva passa a suprir-se.
Desta forma, temos que a decisão a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal poderá ser crucial para a democracia brasileira, estimulando a participação cidadã, partindo, principalmente, dos órgãos municipais, o que estão mais próximos da população em geral e de seus anseios.