quarta-feira, 20 de outubro de 2021

JUSTIÇA ELEITORAL: A IMPORTÂNCIA INSTITUCIONAL DE SEU PAPEL COMO ADMINISTRADORA DO CADASTRO ELEITORAL.

 

A Constituição Federal de 1988, denominada de “Constituição cidadã”, foi editada após longo período de exceção ao regime democrático, tendo sido o momento do redesenho institucional brasileiro.

Demonstrou, assim, relevante preocupação com a garantia dos princípios que a nortearam, in casu, com referência ao processo eleitoral consagrador da democracia participativa, dentre outros, o da igualdade e da liberdade do voto, o da isonomia entre os candidatos postulantes e lisura dos meios empregados.

Neste sentido, o alistamento dos eleitores com a formação do cadastro eleitoral, determinando o corpo de cidadãos devidamente qualificados ao exercício do sufrágio, é tido como um dos primeiros atos do processo que culmina com a proclamação dos eleitos, para posterior diplomação e posse para o exercício dos mandatos eletivos.

Ressaltando a importância do cadastro de eleitores, Alvim (2016, p. 195) afirma que “De sua justa e fiel construção depende a legitimidade de todo o processo eletivo e, portanto, da própria democracia.”

Nesse contexto, a determinação da forma como ocorrerá a governança eleitoral, a qual, segundo Cambaúva (2014), envolve as instituições e normas que regem a disputa nas eleições, terá impacto decisivo nestas.

A governança eleitoral se divide em atividades diversas, também denominadas dimensões ou níveis, quais sejam, rule making, rule application e rule adjudication.

Sinteticamente, a dimensão de rule making refere-se à elaboração das regras incidentes sobre a eleição, já a rule application diz respeito à administração do processo das eleições, com a aplicação daquelas regras e, por fim, a rule adjudication consiste na instância em que serão dirimidos os conflitos entre os atores surgidos durante o processo eleitoral.

Neste quadro, a administração do cadastro eleitoral, bem como o prévio alistamento, encontram-se inseridos na dimensão do rule application.

A importância do alistamento e do cadastro é mencionada por Elkit e Reynolds (2005 apud TAROUCO, 2014, p. 232) como um dos fatores que afetam a atuação dos partidos e, consequentemente, o funcionamento dos sistemas partidários.

De forma mais ampla, Tarouco (op. cit., p. 230) destaca que:

Os chamados EMB – Electoral Management Boards (IDEA, 2005) têm sido estudados especialmente do ponto de vista de sua independência ou autonomia, que por sua vez é tratada como variável independente para explicar desde a qualidade até a estabilidade das novas democracias.

 

No Brasil, ainda no período do Império, onde vigia o voto censitário e era necessária a demonstração da renda mínima exigida por lei, para a realização do alistamento, o cadastro de eleitores era um dos focos de fraudes nas eleições, havendo os chamados “cabalistas”, indivíduos aos quais cabia a atribuição de realizar a inclusão na lista de eleitores dos correligionários de seu chefe, na maior quantidade possível, a fim de obter mais votos, como menciona Carvalho (2016, p.39).

A sobrevinda da República, com sua inspiração positivista, não foi bastante para colocar termo a tais práticas, como deixou claro Assis Brasil (1998, p. 312) em seu texto, considerando um clássico da literatura política brasileira, Manifesto da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul ao país, escrito em 1925, onde escreveu:

Seria quase fazer agravo a esses trinta e tantos, a esses talvez quarenta milhões de habitantes do nosso território-colosso. Provar o que todos vêem, o que todos sentem, o que todos lamentam, isto é, que, sob as leis existentes:

Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor;

Ninguém tem certeza de votar, se porventura foi alistado;

Ninguém tem certeza de que lhe contem o voto, se porventura votou;

Ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio, [...]

 

Tendo aderido a Revolução de 1930, Assis Brasil, integrou a comissão responsável pela elaboração do primeiro Código Eleitoral brasileiro, promulgado por meio do Decreto nº 21.076 de 1932, o qual criou a Justiça Eleitoral e lhe atribuiu, dentre outras, a função de administrar e fiscalizar o alistamento e o cadastro eleitoral, sendo composta por juízes profissionais, o que, no dizer de Vale (2014, p. 16), nos legou transformações que são percebidas até os dias atuais, como o sentimento de lisura dos atos.

Tal modelo de governança foi interrompido no período de exceção democrática do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945, tendo retornado após tal e se mantido até os dias atuais, com algumas modificações, mas que não atingiram a administração do cadastro eleitoral pela Justiça Eleitoral.

Destacamos que, no ano de 1986, após a permissão do voto facultativo aos analfabetos, em 1985, com redemocratização do país, após pouco mais de vinte anos da ditadura cívico-militar implantada em 1964, a Justiça Eleitoral promoveu um recadastramento de todo o eleitorado nacional, com o escopo de erradicar eventuais fraudes no cadastro então existente.

Atualmente, o alistamento eleitoral é realizado nos Cartórios Eleitorais, instalados junto aos municípios brasileiros, mediante prévio agendamento pela internet nos portais da Justiça Eleitoral, ocasião em que o alistando deverá comparecer com a documentação pessoal exigida por lei, para a inserção dos dados necessários ao preenchimento do requerimento de alistamento eleitoral – RAE e coleta dos dados biométricos, compostos da fotografia, assinatura e impressões digitais, os quais serão devidamente armazenados no cadastro eleitoral.



Em razão deste procedimento, a Justiça Eleitoral brasileira passou a contar com o maior banco de dados da população brasileira, com reconhecida qualidade e integridade, tendo, inclusive, a Lei Federal nº 13.444/2017 previsto a utilização de sua base para a implantação da Identificação Civil Nacional – ICN.

Para organizar o cadastro eleitoral visando a votação e combater fraudes, nos 150 dias anteriores à realização das eleições ocorre o fechamento do cadastro eleitoral, período em que não há a possibilidade da realização de novas inscrições ou transferências das já existentes.

Também, para a garantia da higidez do cadastro, foram estatuídos mecanismos manutenção deste, para que a Justiça Eleitoral tenha o controle sobre a correção de seu conteúdo, sendo tais o batimento do cadastro, a correição do cadastro e o procedimento de revisão do eleitorado.

O primeiro procedimento visa a identificação da existência de inscrições eleitorais em duplicidade ou pluralidade, realizado de forma automatizada, previamente a operação de inserção de dados, novos ou alteradores, junto ao cadastro centralizado do Tribunal Superior Eleitoral, gerando, quando da identificação de inconsistências, a abertura de procedimento para a eliminação de inscrições indevidas, presidido pelo Juiz Eleitoral da Zona onde ocorreu a identificação do problema.

A correição de cadastro é procedimento instaurado por determinação do Tribunal Regional Eleitoral para a apuração de fraude no alistamento de eleitores junto a determinada Zona ou município, mediante provocação fundamentada noticiada à Justiça Eleitoral.

Por fim, constatada eventual fraude em decorrência de correição em percentual que possa comprometer a lisura do pleito, deverá o Tribunal Regional determinar a revisão do eleitorado, com o comparecimento pessoal de todos eleitores de determinada circunscrição, para que comprovem documentalmente os requisitos necessários à inscrição eleitoral, notadamente o relativo ao domicílio, que, nesta seara, refere-se a qualquer forma de vínculo com aquela localidade, diferentemente da residência compulsória caracterizadora do domicílio civil.

Sobre a importância destes, destaca Alvim (op. cit., p. 197) que:

Um registro escorreito constitui pressuposto fundamental da lisura de um processo eletivo. Nessa lógica, a segurança do processo democrático demanda a instituição de instrumentos de depuração do cadastro eleitoral, com o objetivo de mantê-lo limpo, isento de fraudes e deturpações. O cadastro eleitoral há de se espelhar, apenas e tão somente, a massa legalmente habilitada à procedimentalização da representação política.

 

Destaca-se que, durante todos os atos relativos ao cadastramento dos eleitores, é possibilitada a fiscalização pelos partidos políticos, bem como ofertada a oportunidade de eventuais impugnações, além do acompanhamento diuturno do Ministério Público Eleitoral, na qualidade de fiscal do cumprimento da lei em todos os atos, em defesa do interesse público primordial envolvido, sempre levados, quando da realização de questionamentos, ao crivo judicial.

Desta forma, em conclusão ao todos exposto, vemos que a opção pela governança eleitoral realizada no Brasil, com a atribuição a Justiça Eleitoral da função administrativa de todo o processo eleitoral, partindo do alistamento até a diplomação dos eleitos, incluindo a administração do cadastro eleitoral, criou um órgão especializado para tanto, com a necessária autonomia e independência, e permitiu a implementação de processos uniformizados e automatizados, gerando transparência e confiabilidade.

Permitiu, também, a implementação de mecanismos de controle aptos ao combate de fraudes, acessíveis aos atores interessados no processo eleitoral, gerando segurança.

Tais resultados aumentam a qualidade da democracia, ao permitir que, já de início, o processo seja implementado com garantias à efetivação da real vontade popular manifestada no pleito em decorrência direta do modelo institucional adotado.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVIM, Frederico Franco. Curso de Direito Eleitoral. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2016.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 05/01/2018.

BRASIL. Código Eleitoral Anotado e Legislação Complementar. 12ª edição. Distrito Federal: Tribunal Superior Eleitoral, 2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/codigo_eleitoral/codigo-eleitoral-anotado-e-legislacao-complementar-12-edicao-atualizado.pdf>. Acesso em: 05/01/2018.

BRASIL, Joaquim Francisco Assis. A democracia representativa na República: antologia. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. (Coleção Memória Brasileira). Edição fac-similar.

CAMBAUVA, Daniella Fernandes. Governança eleitoral: um ensaio comparado sobre os modelos brasileiro, boliviano e venezuelano. In: Cadernos Adenauer: Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p. 245-260, 2014.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

TAROUCO, Gabriela da Silva. Governança eleitoral: modelos institucionais e legitimação. In: Cadernos Adenauer: Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p. 229-243, 2014.

VALE, Teresa Cristina de Souza Cardoso. Aspectos históricos da Justiça Eleitoral brasileira. In: Cadernos Adenauer: Justiça Eleitoral, Rio de Janeiro, v. 1, n. 15, p. 11-25, 2014.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

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